quinta-feira, 29 de abril de 2010

terça-feira, 27 de abril de 2010

PARE, ESCUTE, OLHE Texto de Jorge Laiginhas e fotografia de Leonel de Castro


28 Abr Qua 21h30 FNAC Norte Shopping




Este livro é um documentário fotográfico realizado pelo fotojornalista Leonel de Castro , com texto do jornalista Jorge Laiginhas , motivado pela supressão da chamada Linha do Tua, que irá ficar submersa após a construção da barragem do Tua. Trata-se de um documento histórico, uma vez que é um trabalho inédito e único de registo fotográfico exaustivo. Os registos fotográficos captam não só a enorme beleza e dignidade da paisagem, como a própria vida da linha ferroviária: as pessoas que a utilizam, a presença dos carris e do comboio na terra e na vida das gentes da região.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Pare, Escute, Olhe - Narrativa


Esta narrativa foi escrita durante as caminhadas que efectuámos pela via-férrea do Vale do Rio Tua que será, em parte, submersa se for construída a Barragem Hidroeléctrica de Foz-Tua.


Todos os textos apresentados em itálico são passagens bíblicas



Jorge Laiginhas/Leonel de Castro


I - Apenas existe aquilo que a nossa memória guarda.



No princípio criou Deus os céus e a terra. 

A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus movia-se sobre a face das águas. 

E disse Deus: 

- Haja luz. 

Houve luz. 

Viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro. 


E disse Deus: 

- Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas. 

Fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi. Chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo. 

E disse Deus: 

- Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. 

Chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mar; e viu Deus que era bom. 

E disse Deus: 

- Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi. E a terra produziu erva, erva dando semente conforme a sua espécie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom. E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.


*


A Luísa encontrou o meu pai morto, arrefecido, no chão do quarto onde era suposto encontrá-lo esperto. Tinha a cabeça aberta e havia salpicos de sangue no chão e na mesinha de cabeceira. 


*


Colocaste as nossas faltas à tua frente

os nossos segredos sobre a tua luz.


*


Seis horas da manhã.

Viajar pela via-férrea do Tua – talhada a machado por deuses escravizados – é experimentar o efeito alucinogénio de pendurar os olhos numa janela donde se vê o chão do céu. Começou por ser um rio de esperança, a linha do Tua. Um rio de esperança que o sono dos homens afugentou. É, agora, antecâmara das memórias. Um modo ingénuo de gastar o que resta da sola dos sapatos ou, quiçá, o derradeiro sopro antes da nudez. Uma certa ocultação, por intermédio de metáforas, dos suspiros que suspiramos e não queremos. É não entregar o corpo – o nosso corpo ainda morno – às águias da noite. 


O desassossego da passarada acorda-me. Apalpo-me. Dou pelo frescor da madrugada colado à minha pele. Estremunhado, espreito os ombros das montanhas a nascente em busca de uma nesga de sol. Em vão.  

Espíritos, juncando o chão, murmuram um qualquer boato obscuro. A língua do vento apaga as velas da madrugada e eu, pecador, benzo-me para afastar os mosquitos. Não. De todo. Não me benzo para remissão dos meus pecados. Não. Benzo-me para afastar os mosquitos que zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz me picam os olhos. Os meus olhos. 


 A estação 

[estação do caminho-de-ferro, vulgo, estação dos comboios]

de Foz Tua, lambida por uma melosa quietude, apresenta-me as sombras, com as quais dormira. Cumprimentamo-nos dentro da ausência. Uma ausência afiada no gume do crepúsculo.

Para lá da lousa distante do céu adivinho um lugar onde todas as chagas cicatrizam. A luz, coada pelas nuvens rasantes, ganha a agudeza de uma lâmina. Repudio as sombras oleosas que escorregam pelo vale delindo as arestas das penedias circundantes.


*


Fiquem envergonhados e confundidos

aqueles que buscam perder a minha vida!

Recuem e fiquem envergonhados

aqueles que tramam a minha desgraça!

Fiquem mudos de vergonha

aqueles que se riem de mim!




Penso nos últimos lábios que beijei e dou pela minha língua húmida. O relógio da estação dos comboios olha-me e, aparvalhado, espreito o meu pulso só para mostrar à estação que não preciso das suas horas. Também eu tenho relógio. A alma, a minha alma, sussurra-me:

- Talvez morrer não doa muito…

Uma das portas da estação bateu, por acção do vento, e a minha alma estrebuchou. Avanço até à porta. Entro na sala de espera da estação e apalpo penumbras agarradas às paredes. Escuto gritos silenciados. Saio dali, qual cavalo alucinado, e inicio um trote arrítmico.


*


Carrego a mochila às costas e, pendurada ao pescoço, a máquina fotográfica. Numa das mãos a Bíblia e na outra um caderno e uma esferográfica.

- Que as pernas me carreguem até onde o caminho me pertença – inspiro o frescor das ervas que bordejam a via-férrea.

Despido de verdades ou mentiras, crente que se há anjos, e diabos, hei-de cruzar-me com eles, faço-me ao caminho.


Quem viaja espreita o mundo, experimentando-o. Desenha milagres de cruz. O viajante busca o sonho, qualquer que ele seja, sabendo que os pesadelos são apenas as curvas da viagem. Alpondras sobre as quais posamos, fiat lux, como se fôssemos os actores principais dum filme cujo cenário é um pedaço de chão algures entre o céu e o inferno. Quem viaja aceita ser mais olhar que corpo.


Por agora, neste pensamento, apenas quero escoar os minutos pela via-férrea acima e não adiar a luta feroz que, dentro de mim, está a acontecer. A luta entre a coragem e a cobardia.
Sei-me enredado numa torrente meditativa em busca da raiz de uma árvore – uma só raiz – à qual possa fincar as mãos. Quero ter coragem de voltar a olhar as estrelas, uma depois a outra, e reconciliar-me com a vida possível.

O céu está tão próximo da minha cabeça que me comovo. Soberbo, acredito que me bastará esticar o braço e logo a minha mão tocará o céu!

O portão que dá para uma quinta convida-me a espreitar. Empurro o portão. O ranger dos gonzos e coiceira arranha-me a espinal-medula. Espreito.

Um cão, preso a uma oliveira por uma corda suficientemente grande para que possa evitar que indesejáveis transponham o portão, corre para mim, tresloucado, como se eu fosse um naco de carne. Fujo.


Já a uma centena de passos dos dentes do cão paro, olho para trás, e, horripilado, sinto as mãos do meu pai pousadas sobre o meu ombro. Pressinto, inclusive, o calor da mão do meu pai a aquecer a minha omoplata! Oiço a sua voz. A voz do meu pai…

- Volta para casa.

O bafo da voz do meu pai humedece a atmosfera e, húmida, a atmosfera turva-me o olhar. Um quase-vento sacode a madrugada e espalha onomatopeias pelas redondezas.

Quem me dera ter coragem para descer ao rio, lavar os olhos, e voltar para casa!...


*


Os que me odeiam murmuram juntos contra mim,

e, junto de mim, comentam a minha desgraça:

- Caiu sobre ele uma praga do inferno,

está deitado e nunca mais se vai levantar!




 
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